Novo livro do poeta João Claudio Arendt, A Cinza Descerrada, está sendo lançado pela Editora Pedregulho. Tive o prazer de escrever o prefácio.
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A cinza descerrada
apresenta a produção poética recente de João Claudio Arendt. Síntese de
linguagem depurada e habilidade de contenção, os poemas reunidos neste livro
confirmam o estilo singular de um autor que preza pela economia dos recursos
expressivos em atenção ao essencial. O mínimo, o reduzido e o sutil – antíteses
de nosso mundo afeito aos excessos e ao vozerio estrondoso – encontram aqui o
seu lugar de timoneiros do fazer poético.
Movimento de Tai Chi. Audição
aberta ao sussurro. Grão de sal na boca. Olho colado no buraco da fechadura.
Cada poema aqui apresentado nos captura por seu sentido de concisão. Hino de
singelezas, A cinza descerrada é o estalido perturbador que às vezes
ouvimos ressoar pela casa durante a madrugada. É a matéria quase impalpável
resultante das várias combustões a que submetemos a vida em seu destino de
rupturas. Com sua poesia, Arendt nos mostra que é necessário muito pouco para
deflagrar um espanto.
Na esteira de sua produção
anterior, o poeta dá prosseguimento a uma dicção matizada por sua honestidade
como autor. Não há aqui peripécias formais, maneirismos sazonais, nem os
tendenciosos salamaleques tão presentes na produção poética atual – os quais lançam
uma cortina de fumaça capaz de ocultar o que de fato importa na poesia. Os
poemas de Arendt prescindem de agendas, pautas convenientes e panegíricos
transitórios. Há aqui poesia que se instala lentamente. Ofício de cinzas a
depositar e retirar camadas de sensibilidade. Tessitura fina de encantos e desencantos.
O conjunto de poemas de A
cinza descerrada sustenta-se numa tônica contemplativa diante das urdiduras
da temporalidade, das impotências humanas e da necessidade de assimilação de
tudo aquilo que, em si mesmo, esconde um abismo. Contemplação que não é, de
forma alguma, um gesto resignado. Mas um exercício de impregnação dialógica: dança
de labaredas que incendeiam a linguagem em busca da poesia sob as cinzas
resultantes. “Artifícios compensam / mas não revertem / o que em cada um de nós
/ o tempo deposita”, diz o poeta.
Ao longo da leitura dos poemas
percebe-se uma tensão estabelecida entre o mundo natural e o mundo da cultura.
Em alguns deles, à maneira dos haicais, o poeta nos apresenta fiapos de uma
linguagem visivelmente impregnada pelas imagens da natureza, diante da qual o
universo humano aparenta ser quase incômodo. “Vestir-se de amarelo / para fazer
coro com os ipês”; “Fica em silêncio / e apenas escuta: / o canto das águas / a
voz do vento / o rumor das aves”; “Como aves em face do abismo / as folhas não
há quem ampare”, confidencia Arendt. O poeta percebe que tudo à sua volta
constitui um ímpeto de comunicação, uma centelha prestes a fulgurar novos
sentidos para a “fome de realidade” que é a poesia, segundo ensina Octavio Paz.
Partindo de uma atmosfera
poética natural – sem, contudo, descartá-la –, a linguagem migra para a
intimidade de lugares concretos, onde estão a casa, a rua e os objetos
familiares. Esta inflexão toma a via do erotismo e da sedução diante da carga
de conteúdos poéticos com que nos envolve o cotidiano. Tal qual as vozes de um
madrigal discreto, estão ali a cozinha, o sofá, a panela, o filho, o sexo, o
varal, as ceroulas. Assim, a cultura surge com sua carga desestabilizadora,
situando o mundo humano num campo de disputas simbólicas.
Em A cinza descerrada, vemos
um autor maduro que reverencia a poesia em seu caráter de revelação, sem
render-se ao proselitismo do mercado editorial e sua nefasta lógica on
demand. A leitura dos poemas encaminhou-me para Juan Gelman e Giuseppe
Ungaretti, o que não significa, de forma alguma, uma busca por filiações ou
linhagens, mas apenas uma sensibilidade partilhada que se pode constatar. É um
fato: os poetas de verdade não têm qualquer pudor em invadir e serem invadidos.
Os poemas aqui reunidos nasceram
de um poeta que parece estar ciente de que, conforme alertou a escritora Nélida
Piñon, “estamos sempre nos movendo sobre os escombros dos que nos antecederam.”
De certo modo, as heranças poéticas funcionam como horizontes para uma produção
que almeje o mínimo de rigor e qualidade. Tratando-se de poesia, quando se nega
a tradição, o que sobra é geralmente o pedantismo da boa vontade, do solipsismo
e do talento autoproclamado.
Temos aqui uma poesia que se aprofunda
em seu próprio fazer; que atinge seu valor pela via de sua integridade. Os
poetas, de acordo com Percy Shelley, “são os legisladores secretos da
humanidade, os primeiros a captar as verdades indispensáveis.” Fiquemos
atentos, portanto, ao alerta que nos dão os poemas de Arendt. E o façamos
mediante a consciência de que fomos lançados num fosso relativista onde tudo
pode ser nivelado. Assim como se faz com as cinzas, há que se revolver a poesia
como quem busca resíduos. Em meio à matéria consumida, perscrutemos a forma
sobrevivente.
Clóvis Da Rolt