Mal de Amor, o mais recente livro de poemas de Marco Lucchesi (Presidente da Academia Brasileira de Letras), foi lançado em São Paulo no dia 14/11/18. Tive o prazer de escrever a orelha do livro.
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Emil Cioran diz que “todo
comentário de uma obra é insuficiente ou inútil, pois tudo que não é direto é
nulo.” O erro, segundo ele, é ver tudo a partir do exterior, criar sistemas
para o inexprimível, fazer o inventário das visões alheias. Apesar disso, um
inimigo dentro de mim estimula a autossabotagem. Encorajo-me no comentário. E o
faço com a ciência de que a poesia, como qualquer obra artística, não possui sinônimos,
nada que lhe equivalha ou sirva de suplemento. Uma obra verdadeiramente
artística jamais admite um intérprete que a transforme em outra coisa. Se for
sincera e necessária, repelirá todas as justificações por julgá-las tão
incômodas quanto ler com os óculos inadequados.
Em Mal de Amor, Marco Lucchesi incursiona pelo território de Eros, um
dos andaimes a partir do quais a condição humana pode ser entendida e
significada. Trata-se de um conjunto de poemas breves – meditações de um chacal
que grita entre as ruínas –, cuja unidade é dada por uma pulsação erótica, uma
vibração arterial que deixa todos os sentidos eretos. Poemas apresentados com
velaturas e demãos de sutileza que precisam ser removidas como o lençol –
sanguíneo – que envolve o corpo desejado: corpo que Cesare Pavese diz que se
denuda não apenas para o outro, mas para si próprio.
A atmosfera poética concebida
por Lucchesi é úmida, irrigada. Cenário no qual movimentam-se “águas esquivas
na superfície da pele”. As menções ao mar, à praia, à chuva, à correnteza, à
maresia, às ondas e ao amante náufrago situam o erotismo no campo de uma
significação orgânica e permeável à natureza. O amor vaza, espalha-se, toma
qualquer forma. Os amantes são como criaturas que já se conheciam desde a
aurora do mundo, quando ainda serpenteavam feito enguias furtivas no profundo e
aquoso abismo das origens.
A esta atmosfera líquida
unem-se referências ao tempo e suas confabulações. Tempo que incide sobre o
erotismo mediante uma gama imagética ativada por estrelas, a lua, a madrugada,
a tarde, as órbitas, a noite, o sol, as horas. Os amantes agora vivem no tempo:
fratura exposta. Sabem de suas vicissitudes e caprichos. Sabem que durar é
perseverar, pois de todos os sentimentos o amor é o que mais intimamente
conhece os perigos da inanição.
O amor é uma constante na
poesia. Mais do que isso: é um constructo da história, da cultura, da vida. Isso
explica por que, ao longo do tempo e mediante diversas entonações, uma multidão
de espíritos inquietos nele submergiu: Platão, Ovídio, Soren Kierkegaard, Georg
Simmel, Florbela Espanca, Erich Fromm. Não cessamos nunca de pensá-lo,
cantá-lo, reverenciá-lo. Talvez porque o amor seja a forma pela qual, como diz
Ortega y Gasset, realizamos uma tentativa de transmigração que nos leva para
além de nós mesmos. Mario Quintana foi certeiro quando disse que amar é mudar a
alma de casa. O amante é um foragido, desertor em agonia, criatura flutuante
que almeja lançar sua âncora em águas alheias.
Mal de
Amor
é o canto renovado de um tema inesgotável. Nos poemas aqui reunidos, o
poeta-argonauta nos convida a uma travessia permeada por oscilações, perigos e
desafios. Porque sabe que os mares do amor são povoados por Adamastores. Porque
admite que tudo no amor é tenso, limítrofe, fugaz como uma floração: “Foge da
noite a tarde ensolarada. E se desmancha / num clamor intranscendente. O ocaso
é uma / nódoa vermelha, no lençol de nossa diáspora.” Eis aqui a melancolia de
um adeus, o levante dos corpos outrora friccionados mas que já não se
reconhecem. Dentro de si o amor guarda a ameaça de um contragolpe.
Para quem aceitar a travessia proposta,
o poeta oferece uma carta. Suas exigências não são poucas: portar “um destemido
canto de beleza”; ouvir o “sussurro das sombras”; levar consigo “um enxame de
palavras no coração”; estar ciente de que “a correnteza não perdoa indecisões”.
Por tudo isso, Mal de Amor é um teste
de resistência e perseverança. É a declaração, com notas trágicas, de quem
interpela o mais fundamental dos sentimentos sem desconsiderar o ardil de seus
alçapões ocultos. Mas é também um clamor de superação. Exercício de ruptura.
Ímpeto de violação. Pois o amor é a única medida possível para determinar com
que grau de intensidade a vida de cada um de nós se ergue para além dos limites
e das contingências. A vida na qual o amor se realizou é, sem dúvida, uma vida
justificada.
Clóvis Da Rolt
Jaguarão-RS, 13/09/18